Fechado há 20 anos, Museu Wanderley Pinho guarda a memória da opulência e da escravidão no Brasil

Por Redação
18 Min
Foto: Atarde

“Indubitável e real naquele ‘sobrado’ é a imponência de que ele se reveste – vasta massa antiga de alvenaria a acordar nos que a veem e visitam, entre românticas evocações, o apetite das ressurreições”. A frase está num livro escrito por José Wanderley de Araújo Pinho sobre o casarão que pertenceu à sua família. E não poderia retratar melhor o lugar de frente para o mar da Baía de Todos-os-Santos, cercado pelo verde denso da mata e por mais de 400 anos de história – as memórias, algumas tão dolorosas, que são ali ressuscitadas.

José, que foi deputado federal e prefeito de Salvador, morreu antes de ver o Engenho Freguesia, no distrito de Caboto, em Candeias, virar o Museu Wanderley Pinho. Criado em 1971, está há quase 20 anos fechado para visitação.

Quem quer que o aviste se espanta com seu porte e com o absurdo de que esteja assim relegado. Mas é possível que essa história mude em breve – ou talvez breve não seja uma boa palavra. No final de agosto, a secretaria estadual de Turismo abriu uma licitação para obras de restauro do museu e seu entorno com investimentos de cerca de R$ 26 milhões, por meio do Programa Nacional de Desenvolvimento do Turismo (Prodetur), com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A previsão é que o museu seja reaberto até 2021.

Numa tarde nublada de uma segunda-feira, Muito visitou o Wanderley Pinho. Para chegar ao museu por terra é preciso pegar a BR-324 em direção a Candeias e seguir em direção ao Porto de Aratu. A sinalização da estrada, bastante esburacada, não ajuda, mas sempre é possível perguntar uma indicação de como chegar ao povoado de Caboto. A viagem dura cerca de 40 minutos. Uma outra licitação foi aberta para restaurar o píer do lugar, que funcionará como uma base náutica, permitindo o acesso também pelo mar. Hoje, dá para ir de barco partindo dos restaurantes que ficam em Caboto ou das ilhas ali perto – neste caso, o desembarque é na praia mesmo, molhando os pezinhos.

Quem chega de carro não consegue passar pelo portão que dá acesso ao museu. É preciso seguir a pé, como fazem os moradores do entorno, que usam o acesso para tomar banho de mar, pescar, mariscar, cortar caminho para o porto, enterrar seus mortos. O casarão avista, impassível, os cortejos fúnebres em direção ao cemitério local.

Quem anda por ali também passa em frente à igreja Nossa Senhora da Conceição, pegada ao sobrado, característica que o torna singular no Brasil. O costume era que casa e capela estivessem nos engenhos separadas uma da outra. Ali no Freguesia, andam coladas, facilitando pedidos de milagres aos santos. Ao lado, na altura de qualquer menino, fica o sino, que José imagina que servisse para dar avisos dos afazeres do lugar, para além de marcar momentos religiosos.

Memória colonial
Fundado no século 16, em meados de 1560, o quatrocentão Engenho Freguesia virou o Museu Wanderley Pinho em 1971

 

A estrutura da igreja  é a que está mais danificada. O teto está escorado  por tábuas, escondendo as pinturas do afresco. Mas ainda assim dá para ver da janela um dos túmulos de quem fez da capela morada eterna. Em 1836, “falleceo” Antonia Thereza de Sá Pitta, “protectôra da indigência”.

Uma mesma escadaria de pedra dá acesso à igreja e à entrada principal do casarão – cuja chave abre essa reportagem. Lá dentro, são 56 cômodos, mais de 30 quartos, distribuídos em quatro andares. Estão todos vazios, desabitados de gente, mas também de móveis e enfeites, aumentando a sensação de vastidão.

Além dos poucos funcionários que mantêm o lugar de pé, as únicas criaturas vivas que andam por lá são os morcegos. Há pedaços de plástico preto estrategicamente espalhados pelos assoalhos de madeira que foram ali batizados de “fraldas”. É como o banheiro dos bichos.

Vida de dor

A cozinha fica de frente para o pátio interno e impressiona pela disposição das coifas e chaminés. No livro  História de um Engenho do Recôncavo, publicado em 1946, José descreve que roldanas e correntes facilitavam a “remoção  dos caldeirões e grandes panelas nos dias de banquete”. “No vazio silencioso da ampla e escura cozinha de outrora, a gente imagina por ali acocoradas escravas, mucamas e crias na multíplice labuta de matar e depenar, moer, bater, temperar, e, em face do fogão-balcão, as abrasadas cozinheiras mexendo e provando, ‘atiçando fogo’ e ‘abanando lumes’”, escreve, num tom saudoso.

Trabalhando há quase 20 anos no museu, um funcionário que não gosta de aparecer nem quis dizer o nome estava ali na cozinha quando falou da tristeza que deve ter sido, para negros como ele, viver ali. “Imagine não saber o que é pai, o que é mãe, e estar trabalhando sem ganhar nada, sendo maltratado. Uma vida de dor. É uma casa de sofrimento”.

Ao lado do casarão, perto da beira do mar, estão as pilastras que sustentavam o engenho propriamente dito. Um tacho resiste no meio do mato alto. Ao fundo, estão as ruínas onde, acredita-se, ficava a senzala.

Em 1991, 137 peças do museu foram roubadas. Em 2000, quando o museu foi fechado para visitação regular, o acervo sobrevivente foi levado para Salvador. Por lá ficaram apenas instrumentos de trabalho, como o carro de boi e parte da moenda da cana-de-açúcar, abrigadas atulhadamente numa sala no primeiro piso.

A mudança fez com que muitos moradores de Caboto desconfiassem que elas tinham sumido definitivamente. Não foi o caso. As imagens sacras, que ficavam na capela, e o brasão dos Pitta, que enfeitava o teto da sala principal, estão no Museu Solar Ferrão, no Pelourinho. Já o mobiliário – exatos 116 cadeiras, aparadores, mesas, marquesas, camas, berços e até uma quartinheira, que servia para guardar as quartinhas na cozinha – está guardado numa sala do Palácio da Aclamação, no Campo Grande.

Antes de o museu ser reinaugurado, as peças também passarão por restauro. Mas a ideia é que o Wanderley Pinho seja mais do que uma reprodução de como viviam os senhores de engenho no Brasil, com os móveis dispostos ordenadamente em salas e quartos, como acontecia quando o local ainda estava aberto para visitação.

“Homem do recôncavo”

João Carlos de Oliveira, diretor do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), responsável por administrar o museu, conta que o espaço irá contar a história do “homem do Recôncavo”. “Ali é possível mostrar o processo de formação histórica do brasileiro, de todo o processo de colonização.  É um equipamento importantíssimo para a Bahia, e restaurá-lo é fundamental, mas a gente precisa também colocar um conteúdo que possibilite àquele lugar se autogerir, que faça o baiano entendê-lo como seu”.

Em 2015, quando assumiu o Ipac, João já anunciava a reforma no Wanderley Pinho – o projeto deu entrada no Prodetur em 2011 – e demonstrava preocupação com o modelo que o museu assumiria. “E se não tiver apropriação? Daqui a um ano e meio no máximo vai ser um espaço degradado”, declarou à época, em entrevista ao A TARDE.  Nesses quatro anos, pensou em formas de manter o lugar vivo, como a construção de uma estrutura anexa que funcionará como um espaço multiúso, no lugar onde se produzia o açúcar. “Uma das demandas importantes é que esse museu possa ter uma relação com o conteúdo do seu entorno, com todas aquelas fábricas que ficam ali. É um espaço para abrigar reuniões, eventos, encontros, mas também exposições contemporâneas”.

Fausto Franco, terceiro secretário de Turismo desde que o projeto foi anunciado, conta que o museu também será integrado a outros equipamentos da Baía de Todos-os-Santos. “Tem os conventos do Paraguaçu, a igreja de Loreto… A gente quer fazer um circuito cultural, histórico, religioso. É um lugar belíssimo”.  Ele ainda não visitou o museu desde que assumiu o posto, mas diz que o conhece muito “de passar de barco”. “Tudo que tem a Baía de Todos-os-Santos no meio, os meus olhos brilham”.

História do Brasil

Há quase duas décadas, a museóloga Maria de Fátima dos Santos dirige um museu fechado. Quando chegou ao Wanderley Pinho, em 2000, identificou os problemas de estrutura do casarão e participou da decisão de fechá-lo para que os cuidados devidos fossem tomados. Ela também esteve à frente da mudança do acervo para Salvador.

Em sua sala no Museu Solar Ferrão, que também dirige, passa o dia olhando para a Nossa Senhora da Conceição que ficava na capela do casarão e para o brasão imponente que estava no forro da sala da casa-grande. Volta e meia, Fátima recebe pedidos de escolas e pesquisadores para visitarem o museu, e costuma atendê-los sempre que possível. “Mesmo vazio, são muitas solicitações.  É a história do Brasil que está ali dentro. Todos os museus são importantes, mas, para mim, o Wanderley Pinho é o único que conta essa história”.

Ela nem consegue falar muito sobre a restauração e a volta do museu, desta vez cheio de vida, sem se emocionar. “Na primeira reunião, já comecei a chorar. É dessa importância mesmo. Fico sem palavras“. Mas faz questão de contar o que fez em todo esse tempo em que o equipamento esteve fechado. Primeiro, cuidar para que não ruísse, com descupinização, recuperação de parte do telhado, revisão elétrica, equipe de manutenção, vigilância 24 horas. E segundo, mas principalmente, encontrar-se com a comunidade para saber o que ela esperava daquele lugar.

Os encontros aconteciam uma vez na semana, com moradores das comunidades do entorno, de Caboto, Passé, Ilha de Maré. Fátima perguntava o que eles esperavam com a reabertura do museu, e ouviu desejos de mães em busca de emprego para os filhos, de avôs que buscavam mais educação, num anseio comum por desenvolvimento. “Há essa expectativa de que traga uma melhora de vida. É preciso pensar no turista, mas também no morador local. Um museu tem que trabalhar na linha do desenvolvimento social e econômico. Tem que ser isso”.

Além de planos para o futuro, as reuniões abrigavam memórias como as de Fernanda Pita, presidente da associação comunitária Amigos de Caboto, que não perdia um encontro. Quando era pequena, ela costumava ir com a avó passear no museu e lembra das festas das crianças no mês de setembro e de como se assombrava com o Senhor Morto que ficava na capela “dentro de um caixão”. “Era uma imagem que me intrigava”.

A mãe de Fernanda estudou no casarão quando o lugar abrigava um ginásio, e seus avós contam que trabalharam lá. Vê-lo fechado assim representa, para ela, uma sensação de “perda”. “É uma coisa singular. A gente participa da luta para ver o museu reaberto, mas tem sido um tempo de frustração. Outros projetos já criaram essa expectativa e não saíram do papel. Agora acho que sai. Ói, tem 99% de chance de sair, se já até abriram a licitação”.

Patrimônio 

A história do Engenho Freguesia começa ainda no século 16, possivelmente nos anos ao redor de 1560. Foi quando o governador Mem de Sá concedeu a Sebastião Alvares aquela sesmaria, após a “grande guerra aos índios do Recôncavo”, como escreve José Wanderley de Araújo Pinho, que também era historiador. Naquela época, andavam por ali os tupinambás, dizimados nos rios de sangue que banham a formação do Brasil.

O professor Jair Cardoso, que dá aulas de história em Candeias e que já foi secretário de Educação da cidade, lembra que foi lá também o primeiro lugar em que a Inquisição “baixou” no país.  “Levou uma senhora de 80 anos, que tinha hábitos judaicos, Ana Roiz. Ela era a grande matriarca, dona daquele casarão do Freguesia, e foi levada para Lisboa para ser queimada viva. Morreu antes, mas seu destino seria a fogueira da Santa Inquisição”.

Em 1624, o lugar foi incendiado pelos holandeses. Mais de século depois, por volta de 1760, ganhou o casarão na forma próxima a que tem hoje. No livro sobre o engenho, José registra informações sobre os homens e mulheres escravizados ali. Em 1811, eram 82. Em 1832, 34. Em 1856, 163. Em 1877, 121. E conta suas profissões: “Trabalhador de arado, oficial da casa de caldeira, purgador, purgadeira, serviço de enxada, trabalhadeira da casa de caldeira, do serviço de moenda, carreiro, arrais de saveiro, marinheiro do serviço doméstico, do serviço da horta, lavadeira, costureira, bordadeira”. E fala dos “defeitos” registrados nos inventários. “Velho, aleijado de uma perna, quebrado da virilha, cego de um olho, com o vício de fugir”. Também sai a fazer contas de quantas sacas de açúcar cada um deles deve ter rendido.

Em 1898 ou 1899, o engenho moeu sua última safra, conta José. Passou por inumeráveis mãos fidalgas até chegar à família dos Araújo Pinho.  Quando foi deputado federal, ele apresentou ao Congresso Nacional, em 29 de agosto de 1930, um projeto de lei para proteger o patrimônio histórico e artístico nacional, até então desamparado. No primeiro artigo, escreve: “Consideram-se patrimônio histórico-artístico nacional todas as coisas imóveis ou móveis, a que dava estender a sua proteção o Estado, em razão de seu valor artístico, de sua significação histórica ou de sua peculiar e notável beleza”.

No mesmo ano, o Congresso foi fechado, e o projeto não vingou, mas esta seguiu sendo a principal inspiração para a legislação atual e para a criação do que hoje é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). José morreu no Rio de Janeiro, em 1967, e no ano seguinte o Engenho Freguesia foi desapropriado pelo governo do estado. Virou museu algum tempo depois, mas ainda parece ser difícil a compreensão de que é preciso preservar nossa história. “Tem um pouco da minha alma ali. Aquele lugar é uma saga, é o choque dos três povos que formaram o Recôncavo e o Brasil”, diz Jair.

Atarde

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