Especialistas afirmam que teorias sobre crise na democracia não se aplicam à América Latina

Por Redação
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As teorias fornecidas pela literatura dominante nas ciências políticas atualmente para tentar explicar as fontes da polarização política que tem colocado em risco a democracia ao redor do mundo são adequadas para os Estados Unidos e a Europa, mas não fazem sentido para os países da América Latina. Por isso, é necessária maior colaboração entre cientistas políticos para identificar outras hipóteses mais plausíveis para o fenômeno pelo qual também passa a região.

A avaliação foi feita por pesquisadores participantes de um painel sobre democracia e inclusão social realizado na semana passada, em Chicago (Estados Unidos), durante a FAPESP Week Illinois.

“Há uma avenida de possíveis colaborações em pesquisa entre cientistas políticos latinos e norte-americanos, por exemplo, para avançarmos na identificação de fontes de polarização política nas duas regiões e para superarmos esse desafio na literatura. Temos muitos dados e interesse em colaborar para compreender melhor esse fenômeno”, disse Marta Arretche, professora da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP.

Segundo a pesquisadora, a literatura mais influente nas ciências sociais hoje, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, estabelece uma ligação positiva entre a desigualdade social e a polarização política para explicar a ascensão da força eleitoral de partidos de extrema direita e as ameaças às instituições democráticas.

Especialistas afirmam que teorias sobre crise na democracia não se aplicam à América Latina
Marta Arretche durante palestra na FAPESP Week Illinois (foto: Elton Alisson/Agência FAPESP)

De acordo com essa teoria, nas democracias mais ricas tem se observado um aumento da desigualdade social que seria a causa do apoio dos eleitores às propostas de partidos de extrema direita.

“Por essa teoria, os partidos de esquerda abandonaram, de alguma forma, seu eleitorado tradicional e implementaram políticas pró-ricos e, por isso, os partidos de direita teriam se aproveitado da insatisfação dos mais pobres, que perderam nos regimes democráticos atuais. Mas pesquisas recentes feitas na América Latina e, particularmente no Brasil, apresentam boas evidências de que isso pode não ser verdade para os países da região”, ponderou Arretche.

Uma pesquisa de pós-doutorado em andamento no CEM, sobre determinantes da polarização política na América Latina, indica que, a despeito do índice Gini (uma medida de desigualdade social) ter diminuído a partir do início dos anos 2000, aumentou a polarização política nos países latino-americanos no mesmo período.

“Há, para a América Latina, evidências que não confirmam a associação positiva entre o aumento da desigualdade e o incremento da polarização. Pelo contrário, mostram uma associação negativa”, sublinhou Arretche.

Outro estudo também realizado por cientistas políticos brasileiros sobre como a percepção de ganho ou perda de status social influencia as posições políticas do eleitorado brasileiro mostrou que quem vota em partidos de esquerda no país são aqueles que avaliam ter ganhado centralidade no espaço político nos últimos 20 anos. Em contrapartida, quem votou em partidos de direita se percebe como alguém que perdeu centralidade nos últimos anos.

“A conclusão dos autores desse estudo também vai na direção oposta da literatura dominante no que concerne aos Estados Unidos e à Europa. As conclusões deles são que as políticas progressistas implementadas por partidos de esquerda no Brasil a partir do início dos anos 2000 moldaram a divisão política que existe hoje”, explica Arretche.

Por outro lado, outro estudo em andamento conduzido pela pesquisadora e colaboradores também apresenta algumas evidências de que houve uma decepção em parte dos eleitores do Partido dos Trabalhadores (PT) nos últimos anos.

“O partido perdeu apoio entre seus próprios eleitores durante as crises pelas quais o Brasil passou nos últimos cinco anos”, afirmou Arretche.

As mudanças que vêm ocorrendo no Brasil desde 2013, marcadas por uma crise política muito intensa, têm alterado o comportamento dos atores e gerado instabilidade nos pilares do presidencialismo de coalização no país, apontou Andréa Freitas, coordenadora do Centro de Estudos de Opinião Pública da Universidade Estadual de Campinas (Cesop-Unicamp).

Esse regime parlamentar existente no Brasil e em outros países, em que o presidente, por não ter maioria no legislativo, busca formar coalizões, pode mudar de configuração no país, avaliou a pesquisadora.

“Minha hipótese é que, dado o longo período de crise política pela qual o Brasil passou nos últimos dez anos, houve uma mudança, de fato, no comportamento dos atores políticos no país e não vamos voltar mais às mesmas bases institucionais do presidencialismo de coalizão. Vamos ter de construir outra relação”, avaliou Freitas.

O Brasil e outros países também têm passado por transformações em outras áreas, como a da saúde, que podem contribuir para aumentar os níveis de desigualdade no país, apontou Rudi Rocha, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo.

Uma dessas mudanças é o envelhecimento da população que, consequentemente, exigirá dos sistemas de saúde não só do Brasil, mas de diversos outros países, ter de lidar, cada vez com maior frequência, com doenças crônicas e outras enfermidades cujo tratamento é mais caro, ponderou Rocha.

“Antigamente, os sistemas de saúde de países como o Brasil só tinham de tratar de doenças infecciosas infantis, que são baratas de cuidar por meio da vacinação, por exemplo. Agora, nos países de renda baixa e média as desigualdades vão eventualmente aumentar, se não tiverem capacidade de enfrentar os desafios impostos pelo envelhecimento da população”, avaliou.

A dificuldade do setor público de levantar recursos suficientes para fazer frente às necessidades de cuidado da saúde abre oportunidades para o setor privado entrar e ampliar sua presença, apontou o pesquisador.

“Isso já está acontecendo em muitos lugares no mundo e pode ser um vetor de desigualdade também. Em última instância, só quem pode pagar terá acesso ao serviço de saúde privado”, afirmou Rocha.

Outro vetor de desigualdade social no país são as mudanças climáticas, que impactam mais diretamente as pessoas pobres, que não têm acesso à saúde, sublinhou o pesquisador.

Veja mais informações sobre a FAPESP Week Illinois em: https://fapesp.br/week/2024/illinois.

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