Com 84 espécies atualmente descritas, o gênero de peixes Characidium é possivelmente o mais diverso de que se tem notícia. Isso é o que constataram cientistas brasileiros depois de analisar mais de 4,4 mil exemplares desse gênero endêmico da região Neotropical, conhecido no Brasil como mocinha ou charutinho.
Em um artigo publicado na revista Systematics and Biodiversity, o grupo que reúne pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Federal da Bahia (UFBA) aponta a ocorrência de 15 espécies apenas em rios que deságuam na região Nordeste, nas ecorregiões conhecidas como Caatinga Nordeste e Drenagens Costeiras, Mata Atlântica Nordeste, Parnaíba e São Francisco.
De todas essas espécies, dez já são descritas, quatro dependem de análises moleculares adicionais para serem confirmadas como novas e a restante, certamente, é uma espécie inédita na literatura científica, ainda a ser nomeada.
“Existem espécies de Characidium muito semelhantes entre si, que dificilmente são diferenciadas apenas pela morfologia externa [formato e características do corpo]. Outras, além de muito semelhantes visualmente, são bastante próximas do ponto de vista genético, não podendo ser diferenciadas com base apenas no marcador molecular mais usado para esse tipo de comparação”, explica Leonardo Oliveira Silva, primeiro autor do estudo e bolsista de pós-doutorado da FAPESP no Instituto de Biociências de Botucatu (IBB) da Unesp.
O trabalho começou ainda no doutorado de Oliveira-Silva, quando ele e sua então orientadora Angela Zanata, professora do Instituto de Biologia da UFBA, percorreram os principais rios que cortam a região Nordeste em busca de definir quantas espécies de Characidium realmente ocorrem ali.
Além do material coletado, foram incluídos exemplares depositados em coleções científicas tanto pela própria Zanata quanto por outros pesquisadores. Mais de 4,4 mil indivíduos compuseram a análise, a maior já realizada com esse grupo, integrando dados morfológicos e moleculares. Estes últimos foram obtidos a partir de amostras de tecido dos peixes.
“As próprias coleções contêm muitos indivíduos nomeados apenas pelo gênero, já que mesmo especialistas no grupo têm dificuldade para diferenciar algumas espécies entre si. Além disso, muitas vezes, algumas descrições existentes não dão conta da variabilidade dentro de uma mesma espécie. Daí a importância de se definir com clareza cada uma”, conta Zanata, que foi bolsista da FAPESP durante o doutorado e o pós-doutorado no Instituto de Biociências (IB) e no Museu de Zoologia (MZ), ambos da Universidade de São Paulo (USP).
Entre os achados, os pesquisadores encontraram uma distância genética menor que 2% entre duas espécies com morfologia bastante distinta entre si, Characidium bimaculatum e Characidium deludens.
“Isso é um problema, porque o marcador molecular mais usado para delimitar espécies de peixes de água doce, o gene conhecido pela sigla COI, determina que 2% é o limite para diferenciar uma espécie de outra. No entanto, diversos estudos recentes têm mostrado que essa não é necessariamente uma verdade absoluta e que é de grande importância que se considere a história evolutiva das espécies antes que sejam tomadas decisões de mudanças em seus nomes”, afirma Oliveira-Silva.
As duas espécies em questão, portanto, têm uma relação de parentesco bem próxima, mas é preciso incluir outros genes na análise para estabelecer se de fato se trata de espécies distintas e qual o parentesco e a história evolutiva entre elas.
Outras discrepâncias como essa são esperadas. Em parte, porque o gênero Characidium foi definido como monofilético (todos os elementos são descendentes de um ancestral comum) em um estudo de 1993, a partir de apenas 18 espécies. Isso num tempo em que as ferramentas moleculares ainda não estavam disponíveis para análises filogenéticas, ou seja, da história evolutiva, e ainda não se sabia da grande riqueza do grupo.
A monofilia, nesse caso, é a hipótese segundo a qual as espécies reunidas em Characidium são de uma mesma linhagem, ou seja, compartilham uma história evolutiva com um único ancestral em comum. No estudo atual, os autores apontam que um subgrupo, do qual faz parte Characidium chancoense, está mais próximo dos gêneros Leptocharacidium e Microcharacidium, o que tornaria Characidium não monofilético.
Outro achado, obtido por meio de análise filogenética, que traça a história evolutiva de um determinado grupo, aponta que várias das espécies de Characidium do Nordeste possuem ligação muito próxima com espécies de outras ecorregiões da América do Sul, como o Alto Paraná, Fluminense, Paraíba do Sul e Tocantins-Araguaia.
Uma vez que se trata de bacias hidrográficas atualmente desconectadas, a hipótese mais provável é que ancestrais em comum desses peixes tenham migrado de uma bacia para outra em períodos em que os corpos d´água se encontravam.
Com as evidências em mãos, os pesquisadores agora estão ampliando suas buscas para muito além dos limites nordestinos. O projeto liderado por Oliveira-Silva na Unesp tem como objetivo analisar os Characidium de todos os rios da América do Sul, a fim de estabelecer a filogenia mais completa realizada até hoje do grupo. Além disso, o pesquisador, juntamente com seus parceiros de pesquisa, busca por espécies ainda não descritas.
Recentemente, ele e Zanata estiveram no Peru e na Colômbia, onde puderam analisar exemplares depositados em coleções e, por meio de colaboração com pesquisadores desses países, puderam obter tecidos para as análises moleculares.
“Graças a essas colaborações, estamos conseguindo tecidos de espécies de toda a América do Sul. Assim, poderemos resolver questões fundamentais que ainda pairam sobre esses peixes”, encerra Zanata.
O artigo Underestimated diversity in Characidium (Characiformes: Crenuchidae) from Neotropical rivers revealed by an integrative approach pode ser lido em: www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/14772000.2024.2346510.
Informações da Agência FAPESP